A última reportagem de Dom Phillips

Três anos após o brutal assassinato do jornalista inglês, editora Companhia das Letras lança o livro a que ele se dedicava na viagem em que foi morto. Mergulho na Amazônia ameaçada, a obra foi parcialmente escrita em campo por Dom e complementada por colegas que não queriam vê-lo silenciado
Por Daniel Camargos
 05/06/2025

“DOM! DÁ NOTÍCIA!”, escrevi no celular, assim que soube do desaparecimento naquele 5 de junho de 2022. A mensagem continua sem resposta. Três anos se aram desde que o meu amigo e colega de jornalismo Dom Phillips foi assassinado no Vale do Javari, junto com o indigenista Bruno Pereira – e a sensação de ausência permanece. 

Mas, de alguma forma, recebi sua resposta no último final de semana. Não com seu sotaque britânico com pitadas de carioquês, mas com o que ele deixou: cadernos, áudios, entrevistas, roteiros e esboços que compunham um livro inacabado e agora publicado: Como salvar a Amazônia – Uma busca mortal por respostas (Companhia das Letras, 2025).

Capa do livro "Como Salvar a Amazônia", publicado pela editora Companhia das Letras (Imagem: Reprodução)
Capa do livro “Como Salvar a Amazônia”, publicado pela editora Companhia das Letras (Imagem: Reprodução)

Não é uma obra sobre sua morte, embora ela esteja por trás de cada página. É sobre o que ele viu, ouviu, suspeitou e continua acontecendo. Nas 384 páginas, a floresta aparece como um campo de disputa por terra e por sobrevivência. 

A primeira metade, escrita por Dom, revela com nitidez seu método. A segunda, completada por jornalistas como Eliane Brum e Jon Lee Anderson, expande essa escuta, sem fugir da premissa original: entender a Amazônia com quem a vive.

O título do livro não é um recurso editorial. Era a pergunta que Dom carregava para o campo. Conversou com indígenas, ribeirinhos, sem-terras, fiscais ambientais, cientistas, garimpeiros e fazendeiros. Escutou quem sofre e quem lucra. Percorreu territórios onde o Estado não chega. Entrevistou lideranças ameaçadas e agentes públicos isolados. Tudo isso está ali, costurado com método e humanidade.

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Dom não buscava manchetes fáceis. Na feitura do livro, o tempo parecia ser seu aliado. Anotava à mão, voltava aos territórios, desconfiava de respostas lineares. Precisava dos detalhes e pormenores para alimentar seu texto irrefutável. Ele cobriu a Amazônia com a densidade de quem sabia que o jornalismo socioambiental, no Brasil, é cobertura de guerra. Não por metáfora, mas por realidade.

Estivemos juntos em reportagens no Pará. Em 2019, viajamos a São Félix do Xingu para apurar esquemas de lavagem de gado ligados à JBS, com agem por fazendas do banqueiro Daniel Dantas. Também investigamos em campo o chamado Dia do Fogo, quando produtores rurais incendiaram a floresta em Novo Progresso, em ação coordenada por WhatsApp. Parte dessas histórias está no livro, agora com o fôlego que o jornalismo do dia a dia às vezes limita.

Dom traça o retrato de uma engrenagem. A grilagem (roubo de terras) opera com o aval de cartórios e o incentivo de políticos, sobretudo daqueles que integram a bancada ruralista. Os frigoríficos seguem comprando de áreas embargadas pelos órgãos ambientais e triangulando bois por fazendas de fachada. Os invasores armados avançam sobre territórios indígenas. Os dados se repetem, mas os nomes, nem sempre. O foco está menos em vilões individuais e mais em processos padronizados.

O jornalista inglês Dom Phillips e o seu colega brasileiro Daniel Camargos, em retrato na Amazônia (Foto: João Laet)
O jornalista inglês Dom Phillips e o seu colega brasileiro Daniel Camargos, em retrato na Amazônia (Foto: João Laet)

Há, no entanto, algo além do diagnóstico. O livro reporta soluções em curso: manejo florestal, iniciativas de bioeconomia, experiências de reflorestamento, vigilância indígena com tecnologia. E propõe um caminho que a pela educação e pelo conhecimento da Amazônia, sobretudo de seus povos.

As ideias discutidas se entrelaçam com o noticiário mais recente, o avanço do PL da Devastação, a investida pela exploração de petróleo na foz do Amazonas e as boiadas que continuam ando por porteiras escancaradas em Brasília. Dom antecipa esse debate no livro, ao mostrar que o problema não está só na ausência do poder público, mas muitas vezes em sua presença devastadora.

“Minha impressão é que em Brasília há uma gaveta com todos os projetos da ditadura e todos os governos democráticos continuam abrindo essa mesma gaveta para fazer planos para a região. É pavimentação da BR-319, é hidrelétrica, é exploração de petróleo, é ferrovia. São notícias antigas que não param de voltar”, escrevem o líder indígena Beto Marubo e a jornalista Helena Palmquist no posfácio do livro. 

Em nenhum momento Dom cede à tentação do “gringo salvador”. Ele sabia que não se salva a Amazônia de fora — e nem sozinho. Essa é a tese central do livro que ele jamais escreveu explicitamente, mas a por cada linha: só o esforço coletivo pode conter a devastação. Talvez por isso tenha sido possível terminá-lo. Porque há quem soubesse o que ele queria dizer, mesmo sem que ele dissesse — principalmente sua companheira, Alessandra Sampaio, hoje à frente do Instituto Dom Phillips.

Foi ela quem aglutinou uma equipe de jornalistas experientes, conhecedores da Amazônia e com sensibilidade para dialogar com o projeto inacabado de Dom. A coordenação editorial coube a Jonathan Watts, do The Guardian e cofundador da Sumaúma. 

Ler Como salvar a Amazônia é como trabalhar com Dom de novo. Em certo capítulo, ele conta sobre uma visita a um pecuarista. O tom do texto começa com certo encantamento. Quando vi o nome do fazendeiro, no entanto, entrei em pânico. Lembrei que em 2021 fiz uma matéria mostrando que o pai desse produtor havia sido inserido na Lista Suja do trabalho escravo, publicação oficial do governo federal com empregadores flagrados por esse crime. 

Será que Dom deixou isso ar? Não é possível! Meu impulso imediato foi pegar o celular e mandar uma mensagem para ele. Percebi minha idiotice, continuei lendo e logo estava a informação precisa.

A estratégia narrativa de Dom foi fina. Ele se mostrou seduzido pelo fazendeiro, sentou à mesa com a família e, aos poucos, foi construindo o personagem com fatos até chegar a informação sobre o trabalho escravo. Vejam a descrição que ele faz do almoço:  

“A mesa estava posta numa área sombreada perto da piscina, onde o resto da família nos esperava. Duas moças negras de uniforme cor-de-rosa de empregada serviram fatias macias, deliciosas, de carne grelhada. A piscina era bonita e moderna, mas a dinâmica social era arcaica com pessoas negras servindo a família de brancos ricos. Cumprimentei Fraga Filho pela maciez da carne. ‘Não é daqui’, ele disse. Era uma variedade mais cara, ‘prime’, vinda de outra fazenda. A família não comia a própria carne. Só a vendia para terceiros”. 

Sentar à mesa de um pecuarista, ouvir com atenção e descrever cenas e fatos de modo que o leitor tire suas próprias conclusões. Dom fazia isso com naturalidade, sem buscar vilões caricatos, tampouco soluções enlatadas. Escutou indígenas e ribeirinhos, sim, mas também garimpeiros, grileiros e fazendeiros. 

Nas exibições do documentário Relatos de um Correspondente da Guerra na Amazônia, sobre o assassinato de Dom e Bruno, percebi o impacto que a história provoca. O filme foi dirigido por mim e por Ana Aranha, e produzido pela Repórter Brasil. Na Inglaterra, Estados Unidos, França e Holanda, onde o filme também foi exibido, a plateia reagia com um misto de assombro e impotência. É difícil explicar para o mundo o tamanho da floresta e da tragédia em curso. 

O livro, também publicado em inglês, será fundamental para isso. 

A obra evita canonizações. Dom não é mártir. Era repórter. E sua reportagem continua. Muito além do assassinato, a leitura vale pelo jornalismo como prática de paciência, confronto e humildade. Terminei o livro no domingo à noite com a sensação de que ele ainda tinha muitas perguntas a fazer. E que a melhor forma de honrá-lo é seguir perguntando.

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