DE GRAJAÚ (MA) — Pelo menos cinco fazendas com sobreposição à área declarada da TI (terra indígena) Bacurizinho foram incorporadas ao patrimônio da GenesisAgro sob a vigência de uma norma da Funai editada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Publicada em abril de 2020, a Instrução Normativa 09 liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas — caso da TI Bacurizinho, onde a empresa conseguiu financiamento para fazendas sobrepostas ao território protegido.
“Certificação” é um procedimento exigido para transações imobiliárias rurais, como negociações de compra e venda. É feito por meio do Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), gerido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que, antes da norma, rejeitava esse tipo de registro.
A ascensão de um novo governo, em 2023, permitiu reverter a norma. Durante o governo Lula a demarcação do território também não saiu do lugar onde está há 15 anos.
“O poder econômico tem se fortalecido e se expandido sobre esses territórios. Mesmo com a revogação da medida, as negociações na região continuam, com as empresas adquirindo novas áreas”, diz Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Regional Maranhão. Ele diz que os indígenas têm recebido visitas de representantes de empresas nas aldeias — e que interpretam isso como intimidação. “A demarcação física desses territórios iniciou, mas foi paralisada. E essa demora tem ocasionado esse avanço de empresas e fazendeiros, assim como da degradação ambiental”, completa.
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O cenário de estagnação e conflito ficou ainda mais complexo com a promulgação da “lei do marco temporal” pelo Congresso Nacional, em dezembro de 2023. A norma, em discussão no STF, veda a “ampliação” de terras indígenas demarcadas. Consultados, Funai e Ministério dos Povos Indígenas não enviaram comentários até o fechamento desta reportagem. O espaço permanece aberto.
Fazendas certificadas rendem milhões
Os imóveis certificados pela GenesisAgro na TI Bacurizinho permitiram à empresa ampliar seu patrimônio financeiro, conforme dados inseridos pela companhia em processos judiciais aos quais a Repórter Brasil obteve o.
A Fazenda Santo Izídio, por exemplo, adquirida pela GenesisAgro em dezembro de 2020 por R$ 709,5 mil, foi registrada no nome da empresa com valor muito superior a isso: R$ 5 milhões. Essa propriedade foi incorporada no CAR (Cadastro Ambiental Rural) vinculado a um financiamento de R$ 5 milhões obtido pela GenesisAgro junto à Caixa Econômica Federal.
Já o conjunto de fazendas Pontal e Boa Sorte, totalmente sobreposto à TI Bacurizinho, foi incorporado ao patrimônio da GenesisAgro em 2020 e logo depois foi parcialmente arrendada a um produtor de soja. O contrato de seis anos tem valor aproximado de R$ 2,8 milhões. A fazenda também foi incluída em um CAR vinculado a financiamentos da Caixa (R$ 595 mil) e outro do Banco CNH (R$ 765 mil) com recursos do BNDES.
A GenesisAgro foi contatada, mas não respondeu aos pedidos de manifestação feitos pela reportagem. O espaço permanece aberto.
TIs mais desmatadas do Cerrado
A Instrução Normativa 09, da Funai, não beneficiou apenas a GenesisAgro. Um levantamento do Cimi identificou pelo menos 83 propriedades privadas certificadas sobre a porção não regularizada de três terras indígenas que formam um mosaico de áreas protegidas no Cerrado maranhense: além da TI Bacurizinho, as TIs Porquinhos, do povo Canela Apãnjekra, e Kanela, do povo Kanela Memortumré, estão em estágio avançado de demarcação (leia o box abaixo) e estiveram entre as mais afetadas pela medida do governo anterior. Ao todo, 46% dos três territórios foram cobertos por fazendas certificadas pelo Sigef após a IN 09.

As TIs Bacurizinho, Porquinhos e Kanela foram as terras indígenas mais desmatadas do Cerrado nos últimos cinco anos, segundo dados do Prodes, sistema de monitoramento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Elas acumularam uma perda de 20,8 mil hectares de vegetação nativa no período.
Estas três áreas estão em uma das principais frentes de expansão do agronegócio do país, o Matopiba – acrônimo para a região que abrange partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A produção de grãos na região quase duplicou entre as safras de 2013 e 2023, e a projeção do Ministério da Agricultura é que na próxima década este volume aumente em mais 37%. Segundo o MapBiomas, quase metade de toda a perda de vegetação nativa do país em 2023 ocorreu no Matopiba.
Parte do desmatamento nestas TIs conta com autorização da Secretaria de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais do Estado do Maranhão. Entre 2021 e 2022, a GenesisAgro obteve pelo menos 11 licenças autorizando atividades agrícolas, criação de gado, produção de carvão e a derrubada de vegetação nativa em três propriedades incidentes sobre a TI Bacurizinho.
Questionada pela reportagem, a secretaria afirmou que não autorizou atividades “em terra indígena demarcada”. O órgão disse que, no caso de imóveis localizados a menos de dez quilômetros de TIs homologadas, a Funai é consultada. “Em todos os casos licenciados mencionados, informamos que não houve qualquer manifestação ou objeção da Funai”, garantiu o órgão estadual. Leia a resposta completa aqui.
Um diagnóstico socioambiental das TIs Kanela e Porquinhos, produzido pelo CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e pela consultoria técnica Jerivá Socioambiental em 2022, registra que a expansão das lavouras de soja e milho já sobrepõe grandes porções das áreas em revisão de limites e se avizinha das áreas homologadas. “A velocidade com que este processo vem avançando em toda a região indica que as pressões sobre o território e modo de vida Canela serão muito significativas e, quiçá, irreversíveis em poucos anos”, alerta o estudo.
“Antigamente, nós andávamos à vontade. Tinha muita caça, muito peixe, muito fruto”, reflete Zeca Canela Apãnjekra, ancião da aldeia Porquinhos. “Mas agora, é muito difícil, a gente não pode mais andar, é perigoso. O fazendeiro não gosta, a empresa também não gosta. Antigamente era só mato, só o lugar onde nosso bisavô morava. Mas agora as empresas, os fazendeiros, que não sei de onde vieram, querem tomar o nosso lugar”.
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