Condenado por torturar jovem, PM violou ordem judicial e atuou nas ruas no Pará

Cabo da Polícia Militar do Pará, Wagner Braga Almeida foi condenado pela tortura, em 2021, de Mateus Gabriel da Silva Costa, desaparecido desde então. Recorrendo em liberdade, o policial só poderia realizar serviços istrativos
Por Jeniffer Mendonça | Edição Igor Ojeda
 19/05/2025

EM VIOLAÇÃO A UMA DECISÃO JUDICIAL, um cabo da Polícia Militar do Pará condenado por torturar um jovem de 18 anos atuou em uma ocorrência em Oeiras do Pará, no norte do estado, em março de 2024. Recorrendo em liberdade, Wagner Braga Almeida não poderia atuar nas ruas, mas tinha permissão para realizar serviços istrativos. O descumprimento da medida pode resultar em sua prisão.

André Pinto da Silva, outro cabo da PM condenado pelo mesmo crime, também pode ter desrespeitado a determinação da Justiça. Ele foi escalado para reforçar o policiamento na cidade de Portel, no norte do Pará, durante a Semana Santa de 2024. Procurada pela reportagem, a assessoria da corporação não respondeu se o cabo efetivamente participou da patrulha.

Em fevereiro de 2023, Almeida, Silva e outros dois policiais militares foram sentenciados pela Justiça Militar a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado pela tortura, em fevereiro de 2021, de Mateus Gabriel da Silva Costa. O caso aconteceu no município de Xinguara, no sudeste paraense. O jovem, que tinha 18 anos na época, está desaparecido desde então.

Mateus Gabriel da Silva Costa está desaparecido desde 2021, quando, segundo a Justiça, foi abordado e torturado por PMs do Pará (Foto: Arquivo pessoal)
Mateus Gabriel da Silva Costa está desaparecido desde 2021, quando, segundo a Justiça, foi abordado e torturado por PMs do Pará (Foto: Arquivo pessoal)

Em abril deste ano, a condenação foi confirmada em segunda instância, mas com uma redução de sete meses na pena. Os policiais, no entanto, não foram investigados pelo desaparecimento forçado do jovem, pois o Brasil ainda não reconhece esse crime em sua legislação. 

“Parece que a justiça não chega para eles”, lamenta a gerente istrativa Zely Aparecida Ribeiro da Silva, de 45 anos, mãe de Mateus. Ela e a filha movem uma ação de R$ 1 milhão contra o estado do Pará. 

Conforme a decisão da Justiça Militar, os acusados não poderão exercer carreira pública por 16 anos após cumprirem a sentença de prisão. O juiz do caso permitiu que os réus recorressem em liberdade, mas manteve algumas restrições, como não se aproximar de testemunhas e familiares da vítima e não exercer atividades nas ruas. 

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Em 3 de março de 2024, Wagner Braga Almeida e outros três agentes realizaram um “atendimento de ocorrência de conflito familiar” em Oeiras do Pará, informa um boletim-geral da PM paraense de julho do mesmo ano. 

Já de acordo com uma publicação de 15 de março de 2024 no Diário Oficial do estado do Pará, André Pinto da Silva estava entre os oito policiais da cidade vizinha de Breves designados para atuar no policiamento no município de Portel entre 27 de março e 2 de abril de 2024. A ordem, assinada pelo coronel Ubirajara Magela de Sousa Falcão, previa o pagamento de cinco diárias de alimentação e seis de pousada. 

De acordo com o Portal da Transparência, por ainda estarem ativos, os agentes receberam, em abril de 2025, salário de cerca de R$ 4 mil líquidos cada um.

Procurada pela Repórter Brasil, a Corregedoria da Polícia Militar do Pará enviou a mesma resposta, em momentos diferentes, para ambos os casos. Nas mensagens, afirma que “vai instaurar um processo de apuração sobre o militar ter sido escalado para serviço durante uma medida cautelar em validade, uma vez que ele segue afastado do policiamento ostensivo”.

Almeida e Silva não haviam respondido até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto às suas manifestações.

Mãe de Mateus sente que o caso foi ‘deixado de lado’ pelas autoridades

A mãe de Mateus conta estar sofrendo há quatro anos por não saber o paradeiro do filho. “O governo estadual não deu apoio nenhum. A gente até conseguiu na Justiça um acompanhamento psiquiátrico, mas eles nunca disponibilizaram para a gente”, denuncia Zely.

Ela se refere a uma decisão da Justiça paraense de 2023 que determinou que o governo do Pará forneça atendimento psicológico e/ou psiquiátrico à mãe e à irmã de Mateus até o julgamento da ação judicial que elas movem contra o estado. 

Zely sente que o caso acabou sendo deixado de lado pelas autoridades, apesar de o próprio governador Helder Barbalho (MDB) ter lhe prometido pessoalmente, em maio de 2021, que “tudo que tiver ao alcance do governo do estado será feito para que essa família tenha respostas sobre o paradeiro do jovem Mateus Gabriel”. “É difícil, é uma coisa que não tem fim. A gente não tem conforto”, diz a mãe. 

O governador do Pará Helder Barbalho (MDB) prometeu pessoalmente à mãe de Mateus que seu governo atuaria para solucionar o caso (Foto: Reprodução/Redes sociais)
O governador do Pará Helder Barbalho (MDB) prometeu pessoalmente à mãe de Mateus que seu governo atuaria para solucionar o caso (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Afetada após o desaparecimento do filho, Zely ficou por quase dois anos sem conseguir trabalhar. Há um ano, arranjou um emprego num posto de combustível. Sem forças para continuar vivendo em Xinguara, onde Mateus sumiu, ela e a família acabaram saindo de lá. “Me mudei para ficar perto de outros familiares, porque em Xinguara eu ficava sozinha, e em todo lugar eu via o meu filho”, conta. 

A reportagem questionou a Secretaria de Comunicação do estado do Pará, a Procuradoria Geral do Estado e o gabinete do governador sobre as medidas tomadas em relação ao caso e a respeito do não fornecimento de atendimento psicológico aos familiares da vítima, como determinado pela Justiça. Não houve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.

Investigação aponta abordagem, gritos e agressões

A última vez que Zely viu Mateus foi no próprio dia do desaparecimento: 3 de fevereiro de 2021. Ela lembra que o filho trabalhou durante o dia, como frentista, saiu à noite para comprar um lanche para os dois e, mais tarde, por volta das  23 horas, foi dar uma volta de moto. “Ele disse que logo voltava.” Segundo ela, Mateus ainda não tinha carteira de motorista e havia comprado o veículo após anos economizando.

De acordo com o inquérito da investigação feita pela Polícia Civil, ado pela Repórter Brasil, testemunhas afirmaram que o jovem havia ido jogar bola com amigos. Na volta, deu carona para um menino de 10 anos até o centro da cidade. A criança disse que, assim que Mateus o deixou em casa, viu uma viatura o perseguindo. 

Parte dos moradores próximos ao local relatou ter ouvido conversas vindas de um beco sem saída, conhecido como Beco da Baiana, que pareciam ser de uma abordagem policial, além de sons característicos de agressão. 

Em depoimento à polícia, uma das testemunhas afirmou que, ao abrir a janela de casa para ver o que estava acontecendo, um policial mandou-a fechar, sob xingamentos. Outra apresentou dois áudios que diz captarem a abordagem que ouviu na noite do desaparecimento de Mateus. 

A transcrição da gravação está presente no inquérito policial ao qual a reportagem teve o. Nela, descreve-se que há sons de tapas, choros e gemidos, enquanto uma pessoa é questionada com frases como “Onde que tu jogou?” e “Cala a boca! Tu sabe que vai apanhar mais!”. A vítima responde: “Eu não joguei nada não, senhor”. Zely afirma que reconheceu a voz do filho nos áudios.

André Pinto da Silva, um dos policiais condenados pela tortura de Mateus. (Foto: Reprodução/Redes sociais)
André Pinto da Silva, um dos policiais condenados pela tortura de Mateus. (Foto: Reprodução/Redes sociais)

A investigação da Polícia Civil localizou câmeras de segurança que mostram uma viatura aparentemente seguindo a motocicleta que Mateus dirigia nas proximidades do local onde deixou a criança em casa e, depois, acompanhando-a em direção ao beco sem saída. 

Dados de geolocalização da viatura que os policiais utilizavam, fornecidos pela Polícia Militar, indicaram que o veículo permaneceu 19 minutos próximo ao local onde Mateus teria sido abordado. 

Foram realizadas ao menos três buscas pelo jovem e sua moto, uma da Polícia Civil e duas do Corpo de Bombeiros, em áreas indicadas por denúncias anônimas como de “desova” de corpos, ou seja, locais desertos onde cadáveres de pessoas assassinadas costumam ser deixados com o intuito de se ocultar o crime. No entanto, nada foi encontrado. 

Policiais foram condenados por tortura, mas absolvidos por sequestro

Em pouco mais de um mês de investigação, Wagner Braga Almeida, André Pinto da Silva e os também cabos Dionatan João Neves Pantoja e Ismael Noia Vieira foram indiciados pela Polícia Civil por sequestro. Os PMs integravam o Grupo Tático Operacional (GTO) do 17º Batalhão de Xinguara.

Em março de 2021, o Ministério Público do Pará pediu que o caso fosse desmembrado por entender que o crime de sequestro deveria ficar a cargo da Vara Militar, enquanto um possível homicídio seguiria sob responsabilidade da Vara do Júri. 

Assim, ainda em 2021, o promotor de justiça militar Armando Brasil Teixeira acusou os PMs por tortura e sequestro. Eles ficaram presos entre abril e outubro daquele ano. 

Em fevereiro de 2023, o juiz Lucas do Carmo de Jesus, da Vara Única da Justiça Militar paraense, condenou-os por entender que os depoimentos das testemunhas, os áudios apresentados por uma delas, as câmeras de segurança e o GPS da viatura demonstram que apenas os acusados estiveram no mesmo dia, horário e local em que Mateus desapareceu.

O magistrado também concluiu que os PMs torturaram o jovem. Contudo, absolveu os agentes da acusação de sequestro por considerar que “não há provas robustas de que os acusados mantiveram a vítima privada da sua liberdade após os atos de tortura”.

“Eu tenho que saber a verdade. É uma tortura que eu vivo todos os dias”, diz Zely Aparecida Ribeiro da Silva, mãe de Mateus (Foto: Arquivo pessoal)
“Eu tenho que saber a verdade. É uma tortura que eu vivo todos os dias”, diz Zely Aparecida Ribeiro da Silva, mãe de Mateus (Foto: Arquivo pessoal)

No mesmo ano, a promotora de Justiça Flávia Miranda Ferreira Mecchi, da Vara do Júri, pediu o arquivamento da apuração de homicídio. Segundo ela, “houve o esgotamento das diligências e até o presente momento não há provas da prática de crime doloso contra a vida, o que impede o oferecimento de denúncia”. Em janeiro de 2024, o pedido foi acatado pelo juiz Jacob Arnaldo Campos Farache, da Vara Criminal de Xinguara, e o inquérito foi arquivado.

Durante o processo, os PMs confirmaram que a região onde Mateus desapareceu fazia parte da área de patrulhamento do grupo, mas negaram ter abordado o jovem. 

No inquérito da Polícia Civil, a defesa deles sustentou que não há comprovação de tortura, pois a vítima está desaparecida e, por isso, não há laudo indicando as agressões. Afirmou, também, que Mateus poderia ter sido alvo de outras pessoas, por ter cometido atos infracionais no ado. 

No julgamento de segunda instância, a Justiça Militar reduziu as penas – para 8 anos e 2 meses de prisão por tortura –, mas negou o pedido de anulação do processo. O advogado Carlos Felipe Alves Guimarães, que representa os policiais, disse à Repórter Brasil que vai recorrer da condenação no Superior Tribunal Militar. 

Brasil ainda não reconhece crime de desaparecimento forçado

Durante toda a investigação do caso, não há uma única menção ao termo “desaparecimento forçado”. Ele aparece, no entanto, no pedido de indenização da ação movida por Zely contra o estado do Pará em razão do não esclarecimento do paradeiro de Mateus. “Eu tenho que saber a verdade, porque eu não tenho paz. Isso é um tormento. É uma tortura que eu vivo todos os dias”, diz, indignada. 

À Repórter Brasil, a assessoria de comunicação da Polícia Civil afirmou que não existe investigação para esclarecer o paradeiro de Mateus e que o único inquérito relativo ao caso remetido à Justiça foi o arquivado em janeiro de 2024.

Até hoje, o Estado brasileiro ainda não tipificou o desaparecimento forçado como crime, embora tenha ratificado compromissos internacionais a respeito, como a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado.

O país tem colecionado condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo não reconhecimento, responsabilização e reparação às vítimas e familiares de outros casos, incluindo aqueles cometidos por agentes do Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). 

Para Roberta Marina dos Santos, assessora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da ONG Conectas Direitos Humanos, a falta de responsabilização dos crimes cometidos na ditadura tem impacto nas respostas que o país dá sobre as violações cometidas no presente, impossibilitando a criação de políticas públicas direcionadas. 

“Parece que acham que, ‘se a gente não falar sobre isso, o desaparecimento forçado deixa de existir’. A definição de desaparecimento não espontâneo se descaracteriza, e se deixa de implicar os agentes do Estado, como se eles não fossem peça fundamental nesse tipo de violação”, critica.

Ela ressalta que o desaparecimento forçado é imprescritível, uma vez que é considerado crime de lesa-humanidade pelo direito internacional. “No caso da confirmação da morte de uma pessoa, a entrega dos seus remanescentes ósseos para os familiares, se ainda for possível, é, de alguma forma, uma maneira de reparar pelo crime. Mas, se não houver a confirmação, as buscas devem continuar mesmo se existirem condenações”, explica.

Leia também

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil
Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.