Acusada de trabalho escravo na Amazônia, Volkswagen diz que investigou e não viu crime

Volkswagen afirmou à Justiça do Trabalho que apurou as denúncias de trabalho escravo da década de 1980, mas não encontrou irregularidades em sua fazenda na Amazônia. Declarações foram feitas durante primeira audiência com testemunhas em ação movida pelo MPT no Pará
Por Natália Suzuki | Fotos Fernando Martinho
 30/05/2025

DE REDENÇÃO (PA) – A Volkswagen do Brasil, acusada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) por tráfico de pessoas e trabalho escravo em sua antiga fazenda de gado na Amazônia durante a ditadura militar, afirmou nesta sexta-feira (30) à Justiça do Trabalho que investigou as denúncias na época, mas não encontrou irregularidades. O MPT cobra uma indenização de R$ 165 milhões da montadora por danos morais coletivos.

As declarações foram feitas por José Antônio Tiro Rodriguez, representante da empresa na primeira audiência do processo com a presença de testemunhas, ocorrida hoje na Vara de Trabalho de Redenção, no Sul do Pará.

“A Volkswagen apurou todas as denúncias de irregularidades, mas não foram identificadas e confirmadas”, afirmou Rodriguez. 

Conhecida como Fazenda Volkswagen, a Companhia Vale do Rio Cristalino foi uma subsidiária da empresa em Santana do Araguaia (PA), a mais de mil quilômetros de Belém, dedicada à pecuária e à extração de madeira. Comprada com incentivos fiscais da ditadura, a fazenda operou entre 1974 e 1986 e é acusada pelo MPT por um dos mais graves casos de trabalho escravo na história recente do país.

Ao final da sessão, o representante da Volks confirmou ao juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira que a fabricante não tem interesse em fechar um acordo para pôr fim ao processo.

A partir de agora, as partes terão 15 dias úteis para apresentar as razões finais. Depois serão mais 30 dias úteis até a sentença judicial, que deve sair em meados de julho.

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Entenda o caso

Segundo a investigação do órgão federal, a fazenda mantinha cerca de 300 empregados diretos. As atividades mais pesadas, no entanto, eram realizadas por peões contratados de forma precária por intermediários de mão de obra, conhecidos como “gatos”. Eles recrutavam trabalhadores em comunidades pobres distantes, com promessas de salários atrativos e boas condições para atuarem na derrubada da floresta para abertura de pasto. Ao chegarem à fazenda, porém, os peões eram submetidos a um sistema de exploração que incluía endividamento forçado, jornadas exaustivas e restrições à liberdade.

Imagem da visita parlamentar de 1983 mostra um trabalhador fugido da Fazenda Volkswagen foi capturado pelo "gato" Abilão (Foto: Arquivo pessoal/Expedito Soares)
Imagem feita por visita parlamentar à fazenda em 1983 mostra um trabalhador fugido da Fazenda Volkswagen dentro da caminhonete, após ser capturado pelo “gato” Abilão (Foto: Arquivo pessoal/Expedito Soares)

De acordo com o representante da Volks, a empresa não tinha conhecimento sobre o tratamento dispensado pelos intermediários aos trabalhadores rurais. “A Companhia Vale do Rio Cristalino seguia a mesma prática de contratação [de empregados] das outras fazendas, [por meio da] contratação das empreiteiras”, declarou Rodriguez.

O representante da Volkswagen disse ainda que a empresa não era informada sobre as “condições trabalhistas” nas frentes de desmatamento, incluindo adoecimentos, falecimentos, jornada exaustiva e existência de “cantina” na fazenda.

As cantinas eram peças fundamentais no esquema de trabalho escravo, segundo a investigação do MPT. Era ali onde os lavradores compravam os mantimentos para moradia e trabalho, contraindo dívidas superiores a seus salários, o que os impedia de deixar o local. Os trabalhadores ainda eram vigiados e ameaçados no local por capatazes armados, a mando dos intermediários contratados pela Volkswagen.

Rodriguez disse também na audiência que a Volks era uma pessoa jurídica separada da Companhia Vale do Rio Cristalino, ressaltando que a empresa agropecuária tinha autonomia e não fazia parte da cadeia produtiva da fabricante de carros. No início do empreendimento, ele destacou que a Volks detinha 10% de participação como acionista.

Imagem da audiência ocorrida na Vara de Trabalho de Redenção (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Imagem da audiência ocorrida na Vara de Trabalho de Redenção (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Depoimentos detalham escravidão por dívida

A sessão foi marcada também pelos depoimentos de três trabalhadores que alegam ter sido escravizados na década de 1980 na fazenda istrada pela Volkswagen.

O primeiro deles foi o lavrador Raul Batista de Souza, de 66 anos. Ele detalhou como funcionava o esquema das cantinas, onde ele “comprava de tudo”, como a, comida, remédio e a lona usada nas moradias. 

“A lona era para fazer barracão. Colocava forquilha e jogava a lona por cima”, contou. “Dormia na rede que comprava na cantina [também]”, continuou. “Ia tudo para o caderno para descontar no acerto, que ficava com o ‘gato’. Não sabia quanto custava”.

A respeito das condições de trabalho, ele disse que trabalhava de segunda a domingo e que não havia banheiros. Contou também que saiu da fazenda sem receber nada depois de mais de três meses de trabalho.

Souza lembrou que viajou para a fazenda juntamente com o irmão, Gildemar, que “adoeceu de malária e ficou ruim da mente. Nunca teve atendimento médico [na fazenda]”, disse. 

Por fim, o lavrador contou que saiu da Fazenda Volkswagen “vendido” pelo “gato” para trabalhar em outra propriedade da região.

Outro ex-trabalhador ouvido foi Pedro Valdo Pereira Vasconcelos, de 60 anos, atualmente funcionário público. Ele disse que trabalhou na Fazenda Volkswagen durante quatro meses em 1983, quando ainda tinha 17 anos. 

“Banheiro era no brejo. A água bebia também no brejo”, contou. 

Pedro Valdo Pereira Vasconcelos (de azul), ex-trabalhador da fazenda Volkswagen, presta depoimento ao juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Pedro Valdo Pereira Vasconcelos (de azul), ex-trabalhador da fazenda Volkswagen, presta depoimento ao juiz Otávio Bruno da Silva Ferreira (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Segundo Vasconcelos, os trabalhadores faziam a alimentação com mantimentos comprados na cantina, como arroz, feijão e carne, que era “pouca”. Tudo era anotado no caderno e descontado do pagamento pelo trabalho na roça. “Até a foice era descontada”, disse. 

“A gente levantava às 4h apra fazer comida. Partia às 6h para o serviço e voltava às 6h [da tarde]. Ia a pé até o local de trabalho. Trabalhava de segunda a sábado e às vezes emendava domingo, porque a gente queira ir embora”, descreveu o trabalhador. “No final, para pegar [dinheiro] para ir embora, eles diziam que não tinha saldo”, completou.

Os advogados da Volkswagen foram abordados pela Repórter Brasil antes da sessão, mas não quiseram se manifestar. Por meio da assessoria de imprensa, a empresa refutou as acusações e afirmou respeitar a dignidade humana e as leis trabalhistas. Veja a nota:

“A Volkswagen do Brasil refuta e rejeita categoricamente todas as alegações apresentadas na ação movida pelo Ministério Público sobre a investigação da Fazenda Vale do Rio Cristalino. A empresa permanece firme na busca por justiça, alicerçada na segurança jurídica e na confiança à imparcialidade do Sistema Jurídico Brasileiro. Com um legado de 72 anos, a Volkswagen do Brasil se destaca como uma das maiores empregadoras do País, desempenhando um papel significativo no desenvolvimento econômico e social brasileiro. A empresa defende consistentemente os princípios da dignidade humana e cumpre rigorosamente todas as leis e regulamentos trabalhistas aplicáveis. A Volkswagen reafirma seu compromisso inabalável com a responsabilidade social, que está intrinsecamente ligada à sua conduta como pessoa jurídica e empregadora”.

Antes de acionar a Justiça, o MPT se reuniu cinco vezes com a fabricante para tentar uma conciliação. A Volks, porém, se retirou das conversas em 2023, alegando não ser responsável pelos fatos. 


Três anos antes, a empresa havia assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MPT, o Ministério Público Federal e o MP de São Paulo, reconhecendo a perseguição e tortura de ex-funcionários em sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP) durante a ditadura militar (1964-1985) e aceitando pagar R$ 36 milhões em compensações.

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