‘Obrigada pelo produtinho’: marcas usam brechas para exibir crianças em publis

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, anúncios direcionados a crianças podem ser considerados abusivos; TikTok removeu 'publis’ de brinquedos após questionamento da Repórter Brasil
Por Isabel Harari | Edição Carlos Juliano Barros
 08/04/2025

UM VÍDEO publicado no TikTok na semana do dia das crianças, em outubro do ano ado, mostra uma menina de 9 anos atrás de uma caixa gigante cheia de brinquedos, enviada pela loja Multikids: “Gente, eu estou muito animada! Chegou o lançamento pra gente brincar e se divertir”, diz a influenciadora mirim, enquanto joga balões cor de rosa para cima. 

Até o fim de março, a postagem estava disponível no perfil. O conteúdo foi derrubado na sexta-feira (28), após questionamento da Repórter Brasil. O TikTok deletou ainda outro vídeo sobre a mesma marca de brinquedos, compartilhado por um influenciador mirim com mais de 6 milhões de seguidores. 

Em ambos os casos, a plataforma entendeu que as postagens violavam trechos de seus termos de uso que proíbem “exortar diretamente os menores de idade a comprar ou a contratar um produto ou serviço”.  

Conteúdos como esses, no entanto, correm soltos na internet. Em um vídeo no Instagram, uma garota de 5 anos experimenta um tênis com rodinhas que vira um patins vendido pela Kidy, plataforma de comércio de roupas e calçados infantis. Já outra postagem no TikTok exibe uma menina lavando os cabelos com uma linha de cosméticos da Nazca, especializada para crianças: “muito obrigada por enviar esses produtinhos”, agradece a protagonista. 

Influencer mirim faz anúncio de 'tênis que vira patins' em seu perfil de rede social. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução/Instagram - Adaptação: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
Influencer mirim faz anúncio de ‘tênis que vira patins’ em seu perfil de rede social. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução/Instagram/Tratamento Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Livremente reproduzidos nas redes sociais, os vídeos descritos na abertura desta reportagem não poderiam ser veiculados na TV aberta, alertam especialistas ouvidos pela Repórter Brasil

A publicidade direcionada ao público infantil está sujeita a diversas restrições, de acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e com o CDC (Código de Defesa do Consumidor). Uma propaganda pode ser considerada abusiva e ilegal caso “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”, define o segundo parágrafo do artigo 37 do CDC.

O “direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” também é considerado abusivo por uma resolução de 2014 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), vinculado ao governo federal. O uso excessivo de cores e animações, além de personagens e apresentadores infantis, aponta para essa prática. 

Esses limites, porém, nem sempre são respeitados nas plataformas digitais. “Qual é a diferença entre divulgar uma boneca na internet e apresentar numa televisão? É publicidade dos dois jeitos”, questiona a procuradora Ana Elisa Segatti, do MPT (Ministério Público do Trabalho).

Plataforma de brinquedos envia caixa com produtos para influencer mirim. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução / TikTok / Adaptação: Repórter Brasil)
Plataforma de brinquedos envia caixa com produtos para influencer mirim. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução/TikTok – Tratamento: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

O advogado Christian Printes, gerente jurídico do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), concorda.“Ao enviar os brinquedos e tênis para os influenciadores mirins, o fornecedor espera justamente que seus produtos sejam compartilhados com o público alvo dos influenciadores, que são as crianças”, explica.

Propagandas de videogames, material escolar, roupas e sapatos, comidas e bebidas aparecem em profusão no feed de crianças e adolescentes. Quase metade dos usuários entre 9 e 17 anos (49%) tiveram contato com conteúdos de publicidade inapropriados para sua idade, revela a pesquisa TIC Kids Online

“Casos de unboxing [gravações de  produtos abertos em frente a uma câmera] também podem configurar publicidade infantil abusiva”, reforça Printes, do Idec. A pesquisa TIC Kids Online mostrou que 59% dos usuários assistiram a  pessoas desfazendo embalagens e 56% já viram influenciadores exibindo ‘presentes’ de marcas variadas.

A Repórter Brasil entrou em contato com  Multikids, Kidy e Nazca, mas não houve resposta até o fechamento da reportagem. O texto será atualizado se os posicionamentos forem enviados.

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Plataformas dizem que conteúdos postados precisam seguir legislação

Em seus termos de uso, o TikTok afirma que o usuário precisa assegurar que o conteúdo publicitário esteja “em conformidade com todas as leis e regulamentos aplicáveis”.

A Meta, controladora do Instagram, vai na mesma linha e ainda menciona que os perfis devem seguir os códigos de publicidade construídos pela própria indústria – no caso do Brasil, essa é uma atribuição do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), composto por agências, anunciantes e veículos de comunicação. 

Em 2020, a entidade lançou um guia com orientações para publicidade feita pelos influenciadores digitais. O documento enfatiza que o conteúdo deve sempre ser identificado como publicidade e reforça a orientação do próprio conselho: “nenhum anúncio dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança”.

Com 40 anos de atuação no Brasil, o Conar enfrenta o desafio de monitorar as peças de publicidade no universo digital, veiculadas em uma escala muito maior do que as realizadas em jornais, revistas, rádios e  canais de televisão. 

Ao ser questionado sobre os principais desafios para o Conar, o presidente Sérgio Pompílio foi categórico. “São três: meios digitais, meios digitais e meios digitais”, disse em entrevista ao portal Meio & Mensagem em 2022, no início de seu primeiro mandato à frente do conselho. 

Propaganda de linha de cosméticos para crianças em perfil de TikTok. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução/TikTok - Adaptação: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
Propaganda de linha de cosméticos para crianças em perfil de TikTok. A imagem foi alterada para preservar a privacidade da criança (Imagem: Reprodução/TikTok – Tratamento: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Só no ano ado, o Conar instaurou mais de 300 representações, envolvendo denúncias de publicidade de influenciadores digitais, apostas ilegais e anúncios fraudulentos, dentre outros temas. 

Ainda que o número de procedimentos instaurados se mantenha relativamente estável na última década, a taxa de representações contra plataformas digitais explodiu. Em 2016, 48% dos processos instaurados vieram da internet. No ano ado, o índice escalou para 84,6%.

No final de 2023 o Fantástico mostrou como a inteligência artificial vem sendo usada para produzir anúncios fraudulentos. Na época, Pompílio disse que o Conar estava negociando uma série de questões com as redes sociais, como a maior transparência nos anúncios.

“Falta fiscalização. Não existe por parte das plataformas digitais uma obrigação legal de fazer uma verificação prévia se aquele conteúdo está de acordo com o Código de Defesa do Consumidor. Isso deveria ser uma obrigação”, finaliza Printes. 

O Conar mantém um canal aberto para reclamações dos consumidores. Após o contato da Repórter Brasil, o conselho abriu um “processo ético” para analisar o vídeo de produtos de cabelo da marca Nazca no TikTok. O julgamento deve acontecer em breve, de acordo com a entidade.

O que dizem as plataformas sobre a publicidade infantil na internet

O Instagram ite a vulnerabilidade de pessoas com menos de 18 anos diante de conteúdos publicitários. Em nota enviada à reportagem, disse reconhecer que “os adolescentes não estão necessariamente tão equipados quanto os adultos para tomar decisões sobre como seus dados on-line são usados para publicidade, especialmente quando se trata de mostrar a eles produtos disponíveis para compra”. 

Em fevereiro a empresa começou a implementar a “Conta de Adolescente” , uma funcionalidade para usuários com menos de 18 anos. “Essa nova experiência fornece proteções integradas para limitar, por padrão, quem contata os adolescentes e o conteúdo que veem”, diz o texto.

O TikTok também elencou uma série de medidas para a proteção da criança e do adolescente em sua plataforma, como campanhas sobre educação midiática e segurança na internet. Além disso, a empresa veta a monetização do conteúdo produzido por pessoas com menos de 18 anos.

O Youtube destacou a criação do Youtube Kids, um aplicativo dentro do site principal com filtros mais restritivos. Nesse espaço, diz a nota, vídeos com  inserções pagas de produtos são proibidos. O Youtube Kids também veta conteúdos “que sejam muito comerciais ou promocionais”, como “anúncios tradicionais de produtos e serviços enviados por criadores de conteúdo ou marcas e conteúdo que incite diretamente o espectador a comprar um produto”. Leia as respostas na íntegra.

Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana

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